quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Apenas uma crônica no dia dos pais - Por Renata Pletz

            Minha vida é regida por versos e letras. Assim eu sou. Isto que eu amo: poesia, palavras... Desde muito, me expresso escrevendo. Se bem ou mal, não sei...
Acontece que hoje, na hora do mate, só pra variar um pouco, lembrei do meu pai. Apenas uma cena diária que nos desperta algo que é difícil explicar. A tal cena cotidiana, incansavelmente buscada pelos cronistas. O meu mais velho: “Mãe, tu tá com a perna suja de erva de novo!” Sim. Estou sempre. 

            Um gesto pra mim tão automático: ajeitar a bomba, acomodar o barranco e limpar a mão na coxa direita, me fez lembrar tanta, mas tanta coisa.

            Lembrei do meu pai. Me peguei fazendo exatamente como ele fazia. E fui lembrando, lembrando... E a tal saudade foi tomando conta. E lembrar dói. Mas é bom lembrar, pra que assim as coisas não se percam.

            Coisas tão pequenas que pra mim são grandes. “Coisinha”, como ele dizia, naquele vocabulário de quem tinha “pouca instrução, só o quarto livro bem forte, mas um ‘hômi mundiado’” como poucos.

            Ah... Aquele vocabulário... Às vezes me pego usando alguns termos e expressões tão dele e tão plenos de significado que nenhum academicismo me daria.

            Suas implicâncias... Bastava não simpatizar com algo que implicava. E muitas vezes, até com o que gostava, só por hábito. Ainda sinto, por exemplo, sua mão pesada, nodosa, tão áspera, me esparramando o cabelo na desajeitada tentativa de um carinho: “Tu tem esse cabelo que não se ajeita. Escorrido. Igual ao da tua mãe. Cabelo de bugra. Herança da gente da ‘veia’ Eva. Pois diz que a vó da tua vó foi caçada no mato e trazida ‘pras casa’ numa gaiola”. E lá vinha história...

            As histórias são um capítulo à parte. Histórias que eu sabia de cor, mas ainda assim perguntava só pra ouvi-lo contar de novo e de novo daquele jeito só dele. Tinha as de tirar gado da enchente no inverno junto com o vovô. As de quando serviu ao exército na Cavalaria Montada em São Gabriel. As de quando trabalhava na fronteira com a Argentina.

           E a Argentina exercia nele certo fascínio. Era apaixonado por tudo que se referisse à “República del Plata”. Talvez por conta de sua ascendência e do tal “bisavô João Ramos que veio junto com um ‘ermão’ dele ‘pro’ Triunfo depois que findou a revolução”. Eu “virava numa tigra” (outra do vocabulário dele!) quando percebia estar ele a torcer pelos castelhanos no clássico futebolístico Brasil x Argentina. Ele disfarçava. Mas torcia. E comemorava em silêncio com um sorrisinho de canto de boca quando a vitória era dos hermanos.

            Tudo por lá era melhor. Até a maçã. “Olha nenê, o que eu te trouxe: maçã. Essa é boa. Argentina. Vermelha e docinha. Trouxe pra ti.” Esse era o meu presente. Um saquinho de rede de ráfia amarela, cheio de maçãs embrulhadas em papel de seda roxo, comprado na passarela da estação rodoviária de Porto Alegre, onde ele fazia baldeação pra vir pra casa, depois de um mês trabalhando na fronteira. Mas pra mim, eram argentinas. Gosto de infância. Memória olfativa. As mais doces e cheirosas maçãs sempre serão as argentinas.

            Exemplo de retidão de caráter e princípios invioláveis. Homem de bem e de palavra: “Age mais e fala menos”; “Verdade não tem metade”. Grosseiro e birrento, o exemplo do “xucrismo”. E, ao mesmo tempo, o olhar mais terno e doce que eu conheci veio daqueles olhos do verde mais profundo. De quem eu jamais escutei um “eu te amo”. Nunca precisei. Sempre soube.

Renata Pletz
Secretária da CGF

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