Como forma de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio Grande do Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração de um conto local.
O conto deste dia é
de Francesca Mondadori
ABAETÉ, O VERDADEIRO
Será
que com este conto consigo que prolonguem a minha existência? É que, cá entre
nós, por aqui onde estou, poucas coisas são preservadas. Muitas das minhas
comadres e compadres já se foram e pouquíssimas ainda resistem. Nossas
histórias estão sendo perdidas juntamente com as queridas pessoas que por aqui
passaram.
Sabe,
há não muito tempo atrás, o lugar onde estou era uma lagoinha e não havia
planos de que eu existisse. Porém, a comunidade em nosso balneário cresceu. E,
com isso, mais visitantes vieram. Então, ali, ao lado da igreja Matriz eu, também,
cresci. Belo, como nos padrões da época. Diziam que eu estava sempre colorido,
que a minha áurea era em tons pastel. Ao longo do tempo, também tive minhas
modificações, assim como as crianças que se tornaram jovens e, depois, adultos
com suas famílias.
De
tempos em tempos, quando a maresia ficava mais fraca e o sol mais quente, mais
pessoas apareciam para me ver. E, durante muitos anos, essas eram as mesmas que
por aqui se estabeleciam. Era um agito. Ah! Meus pés ainda sentem as correrias,
as chuvas, os silêncios. Quanta saudade sinto do seu Anselmo! Estava sempre com
uma vassourinha, varrendo o chão e, tentava impedir as crianças de correrem nos
corredores. Na hora do café da tarde, sempre era chamado pela dona Enery para
um cafezinho. Também tinha o seu Quico! Ele vinha com a sua charrete,
armazenava o lixo em um tonel e ia embora. Seu Quico era o marido da dona Rosa,
a benzedeira. E a dona Maria, a lavadeira, que recolhia as trouxas de roupa e
levava para lavar. Quando voltava, com seu carrinho de mão de madeira, as
roupas estavam limpas e passadas!
Ah! Se eu parar para neutralizar os sons de
hoje, ainda consigo ouvir os vendedores de jornal que chegavam cedinho. Não sei
se tinham aula de como avisar a sua chegada, mas vinham com muita alegria e com
os mesmos dizeres "Correeeio, Zero-Hora e Folha!!!", esses passavam
às seis/ sete horas da manhã e outra vez à tarde. E o verdureiro que vinha
gritando: "banana, bacate, cenoura, milho-verde, radite, VerdureeeirO!",
esse ainda é o mesmo que passa por aqui!
O tio Joca e Dedé, chamados assim carinhosamente, eram os encarregados de venderem as melancias. O tio Joca trazia as compridas e o tio Dedé as mais arredondadas. Há quem diga que o pessoal gostava mais das do tio Joca, mas eu mesmo nunca as experimentei.
Com os
barulhos das portas batendo, lembro-me que sou do tempo que se tinha horário de
silêncio! Ah! Pobres crianças, não podiam nem correr e nem gritar, por aqui,
nestes momentos. Na verdade, era algo muito sério, uma regra severa que se dava
todos os dias das 13h às 15h. Seu Anselmo não deixava ninguém entrar durante
esse tempo. Às vezes antes das 13h ele deixava os meninos da balainha de palha,
os puxapucheros, entrarem para vender a sobremesa. Depois das 15h, chegavam o
pessoal dos sonhos para o café da tarde. Os sonhos vinham quentinhos e com um
cheiro tão bom que se espalhava por aqui e, claro que sempre vendiam bem.
Havia, também, os vendedores de casquinha com as suas matracas que até hoje
fazem seus barulhinhos pelas ruas dessa cidade, no verão.
Porém,
nenhum desses barulhos se compara às turminhas que fiz parte. Uma delas era
grande, muitos membros que se reuniam na salinha do segundo andar para jogar
cartas, brincar de detetive, cantar com a nossa amiga Clarice, do 206. Essas
crianças! Algumas vezes, a gente pegava os prendedores de roupa e os quebrava,
depois íamos na varanda da salinha e jogávamos em quem passava!!! Claro que era
proibido e não é nada bonito, mas ainda é melhor do que as bexiguinhas d'água e
os cuspes da turminha de uma geração mais recente. Aquela turma combinava de ir
ver o sol nascer, em segredo. Nunca fui junto, mas sempre os acompanhava à
distância. Também, à tardinha, no horário da revoada dos morcegos, os meninos
armavam-se com pedaços de madeira e raquetes e iam às garagens brincar de caçar
morcegos! Era mais uma das atividades da gurizada.
Quando
o sol baixava e o frio começava, essas pessoas despediam-se de mim, mas havia
outras que continuavam comigo, que passavam o ano inteiro! Os dias e as noites
também ficavam mais calmos em todo o balneário.
Por tantos momentos passei. Vi tanto acontecer! Aqui viramos cidade e muito mudou. Eu sou um velho jovem, mas já tenho muitas dores. Essas são dos que não consegui me despedir. Dos que foram embora e não voltaram, dos que foram abaixo e somente senti a tristeza e o pó sendo levado pelo ar. Ainda há a saudade e as recordações. Guardo tantas memórias comigo! Ainda há quem passe por mim e comigo se emocione e, claro, quem me ache ultrapassado e inconveniente. Mas meus inquilinos, veja só, conseguiram, até mesmo, que eu usasse wi-fi. Para alguém como eu, com 58 anos de idade! Eu sei que posso parecer jovem ao falar de minha idade, acontece que, sinto como se vivesse junto com todas as vidas que fiz amizade.
Cada
um deles têm suas histórias comigo. Veja só, o Dr. José Carlos Medaglia, era
engenheiro e foi meu mentor. Junto com o seu Pedro Viero, do 209, contataram os
proprietários dos terrenos vizinhos para construírem um novo prédio. No seu
início, foi o mais alto da redondeza! Um dos proprietários, foi contratado para
ser o mestre de obras, o seu Antero, do 111 e 112, que por aqui zelou por 37
anos e sempre me disse que daqui só sairia para a morada eterna. E assim foi.
Esse
seu Pedro, do 209, era um dos proprietários de terrenos daqui. O da paz,
tranquilizava tudo e todos. Tinha sempre boas conversas que duravam horas! Sua
filha, Marisa, hoje é a proprietária deste apartamento.
Tinha
a dona Idelvira, do 203. Ela tinha uma facilidade de entreter a criançada! Uma
pessoa muito alegre e festiva! Ela tinha uma coleção de gatinhos de porcelana
que sempre chamava atenção. As crianças batiam na sua porta para ver os
gatinhos e ganhar balas. Nas terças-feiras, ela ia na missa das seis da tarde e
trazia pãezinhos de Santo Antônio para os amigos. O mágico Alberto, do 306,
também deixava as crianças entretidas, reunindo-as na salinha e fazia mágica
para diminuir as bagunças e reclamações que aconteciam por aqui.
Ah! O
apartamento 104 era o do seu Silval que deixou para o seu filho, o Renatão.
Este vinha todo o verão com uma Kombi azul e branco e passava os dias pescando.
As crianças sabiam, sempre, quando ele ia chegar, porque ele chegava, chegando!
Era pura alegria! Hoje esse apartamento é de seu filho, Cato. Que é um grande
amigo meu! Muito participativo e meu defensor! O seu Sadi, do 302, é outro
amigo que se preocupa e me defende! Aliás, ele é o nosso síndico!
As minhas queridas amigas dona Mariza e dona Lurdes, que saudade das nossas conversas! A dona Vilma, mãe da Mariza, tinha o apartamento desde o início. Ou seja, até hoje o 108 permanece com os mesmos donos! E, claro, a dona Marília e o Dr. Democratino, do 110, são amigos de longa data e passavam um grande período do inverno aqui. Apaixonados pela nossa praia e, modéstia parte, por mim também!
Mas, sabe,
sinto que aqui, mais do que contar sobre mim, preciso falar sobre uma família,
os Souza da Costa, do 111 e 112. Uma das crianças que vi crescer, ainda mora
comigo, é a minha inquilina mais antiga. Já não é mais tão jovem fisicamente,
mas me defende com unhas e dentes. Quem a conhece sabe que ela está sempre aqui
pertinho com suas gatas. Maria Aparecida ou Cida, para os amigos. Ela é filha
do seu Antero e da dona Enery e, junto com seus irmãos João Paulo, Rosane,
Rosália e Delurdes, que eram meus residentes fixos, criaram grandes e
engraçadas histórias comigo, que um dia ainda hei de contar. A Cida lecionou
geografia em algumas escolas e hoje é aposentada. Com sua ajuda, consigo
recordar das histórias e de todos que por aqui passaram. Com sua graça passou
aos seus sobrinhos o seu amor e zelo por mim. Veja só, já conheci a quarta
geração desta família e, entre várias conversas nossas estão o desejo de que eu
me mantenha firme e forte para que possa conhecer muitas outras gerações.
Agradeço
aos que permaneceram comigo, desde o início, através de suas famílias: Os
Amilibia, Dias, Farias, Hoffmann, Lubisco, Maffazioli, Medeiros, Menezes, Souza
da Costa, Vargas e, Viero. 310, 106 e 206, 201, 212, 311, 107, 104 e 204 e 205,
108, 111 e 112, 313, 209, respectivamente. E aos que cuidam de mim diariamente.
Apesar de meu grande porte, dos meus tijolos, concreto e as minhas várias cirurgias
plásticas, ainda mantenho todas as vidas, momentos e memórias em meu coração.
Acabei de me dar conta que não me apresentei! Prazer, meu nome é como o nome de muitas ruas de minha localidade. Sou o Edifício Abaeté, que em Tupi Guarani, significa "homem verdadeiro". E fico na rua Andira, número 396, no centro de Capão da Canoa.
Por Francesca Mondadori
Emoção purificada pelo registro de significativas passagens por esses corredores e lembranças. Obrigado, Francesca.
ResponderExcluirAbaeté é mais que a localização no centro de Capão da Canoa, é localizado no centro dos nossos corações. Privilegiados nós que ali crescemos, rimos, choramos e aprendemos lições inesquecíveis. Lindo texto, gratidão por tantas recordações, me vi correndo pelos corredores, batendo à porta da Clary, do Seu Anselmo, da Jane, encantada com o apartamento das Rosas ou com os meninos do Santa Maria do andar térreo. Comecei ali correndo e brincando, depois as primeiras idas ao boliche e à SACC, as conversas na salinha, os jogos, as longas horas cantando. Minha homenagem ao querido Abaeté, minha gratidão por anos de encantamento e pelas pessoas maravilhosas que ali convivia. Neneca, Rosália, Rosane e Cida, gratidão por tudo e um abraço no João Paulo, como poderia esquecer dele? Vamos ali pegar vianda no Maquiné? Vamos ver o sol nascer? Vamos dar um passeio até o Tio Joca? E as rodas de samba no Rio grandense? Memórias vivas no nosso coração, parece que escuto os divertidos e assustadores gritos da Bebé! Saudades de todos vocês!
ResponderExcluirNossa, me passou um filme, meus pais foram zeladores do edf Yara, na Av ubrajara 92, seu Antero era muito amigo deles,cheguei a conhecê-lo, tinha uma casa de aluguel aos fundos d edf Yara. São contos que só nós, moradores antigos podemos relatar, tantos moradores, costumes, recordações. Memórias guardadas pra sempre. Edf Yara tmb, antigo, com mais de 50 anos, nasci e cresci lá, ainda permanece de pé, mas sabemos que não por muito tempo. O que me dá uma enorme tristeza, mas.....
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