Como forma
de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio Grande do
Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como
enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore
disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso
é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração
de um conto local.
Hoje
teremos três contos, de autores da Academia de Escritores do Litoral Norte, que
Paulo Campos nos trouxe.
Misteriosa Lagoa dos Barros
por Leda Saraiva Soares
A lagoa se encrespa. Um ruído estranho e
ritmado de tropel ecoa ao longe. Ninfas com cabelos dourados, soltos ao vento…
Vestes prateadas esvoaçantes, resplandecem na escuridão. Galopam em belos
corcéis brancos sobre as águas num fantástico balé etéreo.
Bela e elegante moça vestida de branco.
Cabelos longos até os pés. Em noites de lua cheia, encanta homens que sonham
com tesouros enterrados à margem da misteriosa Lagoa dos Barros. Guardiã de
tesouro? Pede ao escavador de sonhos um pente. O vivente que lhe trouxer este
objeto, sem contar nada a ninguém, encontrará um boião cheio de moedas de ouro
nas proximidades da lagoa. Caso contrário, estará fadado a morrer no dia
seguinte.
Navio, feericamente iluminado, de tempos em
tempos, aparece na lagoa, encantando notívagos.
Uma cidade iluminada surge no meio das águas
em noites escuras.
Noiva, extremamente bela, assassinada por
seu pretendente é jogada na lagoa com pedras atadas ao pescoço. Em determinadas
noites, vaga nas águas em busca de paz, deslocando-se de um lado para outro,
como a patinar sobre pista de gelo.
Redemoinhos, formados pelo vento, rodopiam e
encrespam a lagoa, assustando e causando tragédia a quem se aventura em passeio
de barco. Misteriosa Lagoa dos Barros, plena de lendas e de histórias
fantásticas!
Ao sul, a prainha da lagoa bem frequentada
no verão, local eleito pelos filhos de Floriano a Alzira para passarem o dia.
-Floriano, não vou com traje de banho. Vou
levar um casaco porque costuma ventar na lagoa e eu não quero passar frio.
É melhor irmos em trajes de passeio, mesmo
porque não pretendemos entrar na água.
O acesso à prainha se dá por uma estrada que
passa pelos cata-ventos geradores de energia eólica.
-Alzirinha será que travaram os cata-ventos?
Nunca os vi parados dessa maneira. Olha lá, estão estáticos!
-Floriano, parece mentira, mas não sopra a
menor brisa.
Calam-se. Ouve-se apenas o ruído dos pneus
do carro no asfalto.
-Alzirinha estou com uma fome danada! Esse
cheiro de frango assado que vem aí de trás está mexendo com o meu apetite.
-E eu, meu querido, não queria te dizer. Mas
não vejo a hora de comer, com toda a boca, um ovo cozido com uma pitada de sal.
Veja Floriano, já estamos chegando. Pelo que nos informaram é ali naquela
entrada.
Os filhos do casal e netos já estão ali com
toldos, gazebos, cadeiras de praia, Jeti Sky e tudo o mais para passarem o dia.
Floriano e Alzira encarregaram-se de levar um frango assado, ovos cozidos, pão,
frutas e refrigerantes.
Meio dia. Sol a pino.
-Oi, vô!… Oi vó!… Que bom que vocês
chegaram!
Cumprimentam-se. As crianças entram e saem
da água, refrescando-se. Floriano, discretamente, examina o ambiente. Uma faixa
pequena de areia forma a praia. A lagoa calma, límpida, agradável para um
banho. Mas entrar na lagoa e sentir nos pés aquele lodo que parece sabão
deteriorado… ah! Que saudade da praia de mar…
Um adulto com Jet Sky leva na carona uma
criança. Depois busca outra. Os menores brincam na parte mais rasa. Pouca gente
naquela hora. O sol vai chegando com toda a sua energia. Seus raios escaldantes
atravessam o tecido dos toldos. O calor abrasador é insuportável. Alzira e
Floriano sentem-se inadequadamente vestidos. Não podiam imaginar que na prainha
da lagoa estivesse fazendo aquele calor causticante. Não corre uma brisa.
Alzira arrependida de ter ido, abre o isopor com os quitutes para que tudo se
consumisse o mais rápido possível. O calor a incomoda. As crianças, com fome,
aproximam-se. O piquenique acontece de forma desconfortável. O casal sentado
nas cadeiras de praia entreolha-se, comunicando-se por telepatia. “Que programa
de índio!”
Para completar, surgem, do nada, minúsculas moscas,
quase invisíveis. Não dão trégua, atacando sem parar, tirando o prazer da hora
tão sagrada. Floriano e Alzira abanam-se com tampas de embalagens para espantar
o calor abrasador e os diminutos insetos. Contêm-se em consideração aos filhos
e netos, suportando grande mal-estar. Levantam-se das cadeiras tentando
refrescar-se. Procuram com os olhos alguma árvore. Nada. Não suportam mais.
Minutos depois, pedem permissão para se retirarem. Os filhos entendem.
Pretendem ficar até o entardecer. Floriano arranca o carro. Liga o ar
condicionado.
-Que alívio, meu Deus! Que frescor!…
Alzira, quieta ao lado do marido entrega-se
a lendas que envolvem a Lagoa dos Barros. Será que ali onde estávamos há um
tesouro enterrado? E porque era dia, a guardiã não pode aparecer? E então,
parou o vento, mandou um calor infernal, acompanhado de minúsculas moscas para
nos atormentar e correr conosco?
-Que lagoa misteriosa, meu Deus…
Ao Longo do Caminho
por Artur Pereira dos Santos
Há exatos 40 anos deixei de lado minha
última Monark. Hoje, diante das circunstâncias que transformaram em pesadelo o
que poderia ser a simples acomodação dos elementos ou o desgaste esperado dos
metais me dirigi à casa que vende bicicletas há tanto tempo quanto ao que
adquiri aquela que abandonei depois de usá-la nos primeiros anos a serviço do
meu último patrão, sem cobrar um centavo pelo desgaste.
Minha intenção era saber o quanto custava
uma, poderia ser usada, para que viesse a ocupar o espaço que deixarei vazio
quando vender o carro que hoje possuo. Na verdade, não existe a intenção de
adquirir ou vender coisa alguma. Foi a forma que encontrei para passar entre o
pesadelo e o sonho sem arranhá-los. Embora a vontade fosse destruir o primeiro
e abraçar o segundo.
Cumprimentei os amigos que encontrei na loja
e segui na caminhada em direção ao ponto que queria evitar: Comprar passagens
para voltar ao local que já me acostumei, mas que sei não ser o meu lugar.
Encontrei amigos e desconhecidos. Com eles
conversei para esquecer tantas coisas que me passavam pela cabeça. Cumprida à
primeira etapa proposta, dirigi-me a casa de minha irmã.
Meu caminhar penoso fazia-me parar para
olhar nomes de ruas nas placas das esquinas. Em uma delas fiquei a comparar
quem chegara primeiro à cidade: Se Orestes Clemente Serra ou Lídio Antônio
Monteiro, embora soubesse de antemão que quem chegou primeiro foi o último.
Lembrei
que naqueles locais encontrava perdizes quando voltava da venda de doces da
Dona Cristina ou pé de moleques feito por minha mãe, quando a dunas da Zona
Nova eram arrastadas por juntas de bois até os locais que precisavam ser
aterrados. A doce recompensa apareceu apenas quando parei à sombra de uma
pitangueira e dela provei algumas frutas maduras, enquanto pensava o quanto já
representaram em minha história.
Quando viemos ainda crianças para Capão da
Canoa eu e uma de minhas irmãs, já falecida, deixamos as carretas com nossos
pais seguirem adiante e viemos apanhando pitangas à beira da cerca que seguia
paralela aos contornos da Lagoa dos Quadros.
Pensei mesmo inconformado com as
circunstâncias atuais: Afinal, ainda existem pitangas ao longo de meu caminho.
Oh Lua Cheia!
por Rosalva Rocha
26 de fevereiro de 2010. Saio de Porto
Alegre à tardinha rumo ao último final de semana de veraneio em Tramandaí, a
tão conhecida “capital das praias”, a praia que me abriga desde a infância,
onde eu encontro amigos pelas esquinas, caminho nas manhãs pelo calçadão
sentindo a brisa do mar e me delicio com momentos muito propícios para divagar
e escrever à noite.
A autoestrada está como eu gosto, com
trânsito intenso, mas sem engarrafamentos. Os inúmeros carros cruzam as pistas
pelo caminho e acabam me proporcionando uma deliciosa sensação de companhia.
Não estou sozinha! Começo a pensar: “O que será que essas pessoas dentro de
seus carros, uns luxuosos, outros muito simples, ouvem nos seus rádios/CDs?
Sobre o que elas conversam?” Algumas, no momento de alguma ultrapassagem, olham
pra mim e esboçam um leve sorriso. Cumplicidade?
Certa melancolia paira no ar. Afinal, os
finais de semana deste verão foram bons, cheios de sol e boas energias, muito
chimarrão e a companhia de amigos e vizinhos com espíritos dóceis e sempre com
dicas úteis para a minha vida. Um verão onde a cumplicidade e empatia dessas
pessoas me fizeram muito bem. Eu estava realmente precisando delas neste
veraneio, totalmente diferente dos outros, e com elas aprendi coisas simples
que já deveria ter aprendido há muito tempo, a exemplo de aprender a rezar um
terço da forma correta, de transformar uma simples canga em vários modelos
diferentes, de pintar alguns móveis antigos com criatividade e alegria, de
fazer um drink muito simples e gostoso, ornamentado com hortelã e,
especialmente, de gostar mais e mais de mim e tomar conhecimento de que, apesar
dos meus inúmeros defeitos, sou “dona do meu nariz” e ponto final!
Aliado a esses fatos, outros também precisam
ser registrados: alguns encontros casuais com pessoas queridas que eu não via
há muitos anos, açaí na tigela no Glut´s, um crepe de chocolate de vez em
quando, algumas refeições carinhosamente preparadas como surpresa para aguçar
ainda mais o meu paladar após a chegada da praia, muita leitura e por aí afora.
Eis que de repente a sombra de uma lua cheia surge à minha frente na imensidão
do céu! Uma cena maravilhosa! Adoro a lua quando está cheia – ela sempre me
proporciona coisas boas. Mesmo consciente da atenção necessária ao volante,
começo a fitá-la seguidamente. E ela passa a ser minha cúmplice. Em pensamento,
começo a conversar com ela, a contar os meus enganos, os desenganos, os planos
e a certeza que tenho de que muitas coisas boas acontecerão neste ano. Bons
presságios, sim! Muito bons presságios! Mais alguns minutos e, do lado esquerdo
enxergo, ao longe, a minha cidade natal – Santo Antônio da Patrulha – a
responsável em alguns aspectos pelo que sou hoje.
Lá sempre fui muito feliz junto à minha
família até os 18 anos e granjeei amigos que me acompanham até hoje e para lá
retorno sempre que possível. Vontade de entrar no entroncamento …, mas o atraso
já está evidente e preciso seguir. Um bip-bip-bip soa do meu celular. Apanho-o
e leio a mensagem que provém da minha irmã mais velha: “Já estou quase saindo.
Estou felizzzzz”. Aquele “felizzzz” me deixou mais feliz ainda. Nada como
sentir que alguém que a gente ama está bem. Passo o primeiro pedágio e esqueço
do dinheiro, tamanho o envolvimento com a mensagem e a minha lua companheira. A
cobradora, com olhar simpático, me fita com um ar de questionamento e eu,
finalmente, acabo entendendo que preciso pegar a bolsa. Pedágio pago! Cupom na
mão! Arranco o carro e retorno a olhar a lua. Neste momento já não tenho mais
qualquer dúvida: ela é minha cúmplice por inteiro. Certo excitamento começa a
me contagiar e acabo apertando o acelerador do carro com mais força. 125Km/h.
Ôpa! Calma! Não posso deixar que o encanto desses momentos me contagie a ponto
de correr um perigo desnecessário. Segundo pedágio! Com o “fora” no primeiro,
os R$ 7,00 reais já estão nas mãos. Sigo o caminho.
Começo a avistar a Lagoa dos Barros à
direita, que sempre me encanta com a sua beleza e as suas lendas contadas por
meus pais na minha infância. Em seguida avisto o parque eólico, também
maravilhoso e, de repente, a noite começa a surgir e a minha companheira já
está muito mais clara e brilhante. O contraste com o escuro do céu é
encantador. Recomeço o diálogo com mais energia e peço a ela, em voz alta,
equilíbrio suficiente para seguir a minha vida com dignidade e que os recomeços
neste ano sejam gratificantes, com boas doses de sabedoria. Subitamente enxergo
dentro dela “um homem plantando um pé de alface”, fato que me foi induzido por
minha avó paterna quando eu era criança (acreditem: sempre que vejo uma lua
cheia continuo enxergando dentro ela um homem plantando um pé de alface). Eu
sei que são as suas nuances, mas o homem está lá trabalhando.
Estranho que a noite se prenuncia … esqueço
que o horário de verão findou na semana passada. O horário está certo.
18h30min. Tempo suficiente para chegar em casa, conversar um pouco com minha
mãe e descansar. E a minha cúmplice continua a me acompanhar. Ela está
“totalmente cheia”, do jeito que gosto. Apareceu para brindar o meu final de
veraneio e, para não perder o costume, mais um pedido faço a ela, exatamente na
passagem pela entrada da estrada do mar – neste momento quase não consigo mais
enxergá-la: “que ela me ilumine e me proteja sempre e que eu não esmoreça em
quaisquer situações negativas e, especialmente, não permita jamais que eu deixe
de amá-la”. O trajeto foi maravilhoso, brindado, tranquilo, seguro e
“acompanhado” – tudo o que eu precisava neste dia. As surpresas desagradáveis
deste veraneio simplesmente “viraram pó” – sabe-se lá se aconteceram …
Já estou em casa. E felizzzz!
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