quarta-feira, 24 de maio de 2023

Contos do Curso de Formação Folclórica de 2022

 

Como forma de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio Grande do Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração de um conto local.

 

 Hoje teremos três contos, de autores da Academia de Escritores do Litoral Norte, que Paulo Campos nos trouxe.

 

Misteriosa Lagoa dos Barros

por Leda Saraiva Soares

   A lagoa se encrespa. Um ruído estranho e ritmado de tropel ecoa ao longe. Ninfas com cabelos dourados, soltos ao vento… Vestes prateadas esvoaçantes, resplandecem na escuridão. Galopam em belos corcéis brancos sobre as águas num fantástico balé etéreo.

   Bela e elegante moça vestida de branco. Cabelos longos até os pés. Em noites de lua cheia, encanta homens que sonham com tesouros enterrados à margem da misteriosa Lagoa dos Barros. Guardiã de tesouro? Pede ao escavador de sonhos um pente. O vivente que lhe trouxer este objeto, sem contar nada a ninguém, encontrará um boião cheio de moedas de ouro nas proximidades da lagoa. Caso contrário, estará fadado a morrer no dia seguinte.

   Navio, feericamente iluminado, de tempos em tempos, aparece na lagoa, encantando notívagos.

   Uma cidade iluminada surge no meio das águas em noites escuras.

   Noiva, extremamente bela, assassinada por seu pretendente é jogada na lagoa com pedras atadas ao pescoço. Em determinadas noites, vaga nas águas em busca de paz, deslocando-se de um lado para outro, como a patinar sobre pista de gelo.

   Redemoinhos, formados pelo vento, rodopiam e encrespam a lagoa, assustando e causando tragédia a quem se aventura em passeio de barco. Misteriosa Lagoa dos Barros, plena de lendas e de histórias fantásticas!

   Ao sul, a prainha da lagoa bem frequentada no verão, local eleito pelos filhos de Floriano a Alzira para passarem o dia.

   -Floriano, não vou com traje de banho. Vou levar um casaco porque costuma ventar na lagoa e eu não quero passar frio.

   É melhor irmos em trajes de passeio, mesmo porque não pretendemos entrar na água.

   O acesso à prainha se dá por uma estrada que passa pelos cata-ventos geradores de energia eólica.

   -Alzirinha será que travaram os cata-ventos? Nunca os vi parados dessa maneira. Olha lá, estão estáticos!

    -Floriano, parece mentira, mas não sopra a menor brisa.

   Calam-se. Ouve-se apenas o ruído dos pneus do carro no asfalto.

   -Alzirinha estou com uma fome danada! Esse cheiro de frango assado que vem aí de trás está mexendo com o meu apetite.

   -E eu, meu querido, não queria te dizer. Mas não vejo a hora de comer, com toda a boca, um ovo cozido com uma pitada de sal. Veja Floriano, já estamos chegando. Pelo que nos informaram é ali naquela entrada.

   Os filhos do casal e netos já estão ali com toldos, gazebos, cadeiras de praia, Jeti Sky e tudo o mais para passarem o dia. Floriano e Alzira encarregaram-se de levar um frango assado, ovos cozidos, pão, frutas e refrigerantes.

   Meio dia. Sol a pino.

   -Oi, vô!… Oi vó!… Que bom que vocês chegaram!

   Cumprimentam-se. As crianças entram e saem da água, refrescando-se. Floriano, discretamente, examina o ambiente. Uma faixa pequena de areia forma a praia. A lagoa calma, límpida, agradável para um banho. Mas entrar na lagoa e sentir nos pés aquele lodo que parece sabão deteriorado… ah! Que saudade da praia de mar…  

   Um adulto com Jet Sky leva na carona uma criança. Depois busca outra. Os menores brincam na parte mais rasa. Pouca gente naquela hora. O sol vai chegando com toda a sua energia. Seus raios escaldantes atravessam o tecido dos toldos. O calor abrasador é insuportável. Alzira e Floriano sentem-se inadequadamente vestidos. Não podiam imaginar que na prainha da lagoa estivesse fazendo aquele calor causticante. Não corre uma brisa. Alzira arrependida de ter ido, abre o isopor com os quitutes para que tudo se consumisse o mais rápido possível. O calor a incomoda. As crianças, com fome, aproximam-se. O piquenique acontece de forma desconfortável. O casal sentado nas cadeiras de praia entreolha-se, comunicando-se por telepatia. “Que programa de índio!”

   Para completar, surgem, do nada, minúsculas moscas, quase invisíveis. Não dão trégua, atacando sem parar, tirando o prazer da hora tão sagrada. Floriano e Alzira abanam-se com tampas de embalagens para espantar o calor abrasador e os diminutos insetos. Contêm-se em consideração aos filhos e netos, suportando grande mal-estar. Levantam-se das cadeiras tentando refrescar-se. Procuram com os olhos alguma árvore. Nada. Não suportam mais. Minutos depois, pedem permissão para se retirarem. Os filhos entendem. Pretendem ficar até o entardecer. Floriano arranca o carro. Liga o ar condicionado.

   -Que alívio, meu Deus! Que frescor!…

   Alzira, quieta ao lado do marido entrega-se a lendas que envolvem a Lagoa dos Barros. Será que ali onde estávamos há um tesouro enterrado? E porque era dia, a guardiã não pode aparecer? E então, parou o vento, mandou um calor infernal, acompanhado de minúsculas moscas para nos atormentar e correr conosco?

   -Que lagoa misteriosa, meu Deus…

 

Ao Longo do Caminho

por Artur Pereira dos Santos

   Há exatos 40 anos deixei de lado minha última Monark. Hoje, diante das circunstâncias que transformaram em pesadelo o que poderia ser a simples acomodação dos elementos ou o desgaste esperado dos metais me dirigi à casa que vende bicicletas há tanto tempo quanto ao que adquiri aquela que abandonei depois de usá-la nos primeiros anos a serviço do meu último patrão, sem cobrar um centavo pelo desgaste.

   Minha intenção era saber o quanto custava uma, poderia ser usada, para que viesse a ocupar o espaço que deixarei vazio quando vender o carro que hoje possuo. Na verdade, não existe a intenção de adquirir ou vender coisa alguma. Foi a forma que encontrei para passar entre o pesadelo e o sonho sem arranhá-los. Embora a vontade fosse destruir o primeiro e abraçar o segundo.

   Cumprimentei os amigos que encontrei na loja e segui na caminhada em direção ao ponto que queria evitar: Comprar passagens para voltar ao local que já me acostumei, mas que sei não ser o meu lugar.

   Encontrei amigos e desconhecidos. Com eles conversei para esquecer tantas coisas que me passavam pela cabeça. Cumprida à primeira etapa proposta, dirigi-me a casa de minha irmã.

   Meu caminhar penoso fazia-me parar para olhar nomes de ruas nas placas das esquinas. Em uma delas fiquei a comparar quem chegara primeiro à cidade: Se Orestes Clemente Serra ou Lídio Antônio Monteiro, embora soubesse de antemão que quem chegou primeiro foi o último.

   Lembrei que naqueles locais encontrava perdizes quando voltava da venda de doces da Dona Cristina ou pé de moleques feito por minha mãe, quando a dunas da Zona Nova eram arrastadas por juntas de bois até os locais que precisavam ser aterrados. A doce recompensa apareceu apenas quando parei à sombra de uma pitangueira e dela provei algumas frutas maduras, enquanto pensava o quanto já representaram em minha história.

   Quando viemos ainda crianças para Capão da Canoa eu e uma de minhas irmãs, já falecida, deixamos as carretas com nossos pais seguirem adiante e viemos apanhando pitangas à beira da cerca que seguia paralela aos contornos da Lagoa dos Quadros.

   Pensei mesmo inconformado com as circunstâncias atuais: Afinal, ainda existem pitangas ao longo de meu caminho.

 

Oh Lua Cheia!

por Rosalva Rocha

   26 de fevereiro de 2010. Saio de Porto Alegre à tardinha rumo ao último final de semana de veraneio em Tramandaí, a tão conhecida “capital das praias”, a praia que me abriga desde a infância, onde eu encontro amigos pelas esquinas, caminho nas manhãs pelo calçadão sentindo a brisa do mar e me delicio com momentos muito propícios para divagar e escrever à noite.

   A autoestrada está como eu gosto, com trânsito intenso, mas sem engarrafamentos. Os inúmeros carros cruzam as pistas pelo caminho e acabam me proporcionando uma deliciosa sensação de companhia. Não estou sozinha! Começo a pensar: “O que será que essas pessoas dentro de seus carros, uns luxuosos, outros muito simples, ouvem nos seus rádios/CDs? Sobre o que elas conversam?” Algumas, no momento de alguma ultrapassagem, olham pra mim e esboçam um leve sorriso. Cumplicidade?

   Certa melancolia paira no ar. Afinal, os finais de semana deste verão foram bons, cheios de sol e boas energias, muito chimarrão e a companhia de amigos e vizinhos com espíritos dóceis e sempre com dicas úteis para a minha vida. Um verão onde a cumplicidade e empatia dessas pessoas me fizeram muito bem. Eu estava realmente precisando delas neste veraneio, totalmente diferente dos outros, e com elas aprendi coisas simples que já deveria ter aprendido há muito tempo, a exemplo de aprender a rezar um terço da forma correta, de transformar uma simples canga em vários modelos diferentes, de pintar alguns móveis antigos com criatividade e alegria, de fazer um drink muito simples e gostoso, ornamentado com hortelã e, especialmente, de gostar mais e mais de mim e tomar conhecimento de que, apesar dos meus inúmeros defeitos, sou “dona do meu nariz” e ponto final!

   Aliado a esses fatos, outros também precisam ser registrados: alguns encontros casuais com pessoas queridas que eu não via há muitos anos, açaí na tigela no Glut´s, um crepe de chocolate de vez em quando, algumas refeições carinhosamente preparadas como surpresa para aguçar ainda mais o meu paladar após a chegada da praia, muita leitura e por aí afora. Eis que de repente a sombra de uma lua cheia surge à minha frente na imensidão do céu! Uma cena maravilhosa! Adoro a lua quando está cheia – ela sempre me proporciona coisas boas. Mesmo consciente da atenção necessária ao volante, começo a fitá-la seguidamente. E ela passa a ser minha cúmplice. Em pensamento, começo a conversar com ela, a contar os meus enganos, os desenganos, os planos e a certeza que tenho de que muitas coisas boas acontecerão neste ano. Bons presságios, sim! Muito bons presságios! Mais alguns minutos e, do lado esquerdo enxergo, ao longe, a minha cidade natal – Santo Antônio da Patrulha – a responsável em alguns aspectos pelo que sou hoje.

   Lá sempre fui muito feliz junto à minha família até os 18 anos e granjeei amigos que me acompanham até hoje e para lá retorno sempre que possível. Vontade de entrar no entroncamento …, mas o atraso já está evidente e preciso seguir. Um bip-bip-bip soa do meu celular. Apanho-o e leio a mensagem que provém da minha irmã mais velha: “Já estou quase saindo. Estou felizzzzz”. Aquele “felizzzz” me deixou mais feliz ainda. Nada como sentir que alguém que a gente ama está bem. Passo o primeiro pedágio e esqueço do dinheiro, tamanho o envolvimento com a mensagem e a minha lua companheira. A cobradora, com olhar simpático, me fita com um ar de questionamento e eu, finalmente, acabo entendendo que preciso pegar a bolsa. Pedágio pago! Cupom na mão! Arranco o carro e retorno a olhar a lua. Neste momento já não tenho mais qualquer dúvida: ela é minha cúmplice por inteiro. Certo excitamento começa a me contagiar e acabo apertando o acelerador do carro com mais força. 125Km/h. Ôpa! Calma! Não posso deixar que o encanto desses momentos me contagie a ponto de correr um perigo desnecessário. Segundo pedágio! Com o “fora” no primeiro, os R$ 7,00 reais já estão nas mãos. Sigo o caminho.

   Começo a avistar a Lagoa dos Barros à direita, que sempre me encanta com a sua beleza e as suas lendas contadas por meus pais na minha infância. Em seguida avisto o parque eólico, também maravilhoso e, de repente, a noite começa a surgir e a minha companheira já está muito mais clara e brilhante. O contraste com o escuro do céu é encantador. Recomeço o diálogo com mais energia e peço a ela, em voz alta, equilíbrio suficiente para seguir a minha vida com dignidade e que os recomeços neste ano sejam gratificantes, com boas doses de sabedoria. Subitamente enxergo dentro dela “um homem plantando um pé de alface”, fato que me foi induzido por minha avó paterna quando eu era criança (acreditem: sempre que vejo uma lua cheia continuo enxergando dentro ela um homem plantando um pé de alface). Eu sei que são as suas nuances, mas o homem está lá trabalhando.

   Estranho que a noite se prenuncia … esqueço que o horário de verão findou na semana passada. O horário está certo. 18h30min. Tempo suficiente para chegar em casa, conversar um pouco com minha mãe e descansar. E a minha cúmplice continua a me acompanhar. Ela está “totalmente cheia”, do jeito que gosto. Apareceu para brindar o meu final de veraneio e, para não perder o costume, mais um pedido faço a ela, exatamente na passagem pela entrada da estrada do mar – neste momento quase não consigo mais enxergá-la: “que ela me ilumine e me proteja sempre e que eu não esmoreça em quaisquer situações negativas e, especialmente, não permita jamais que eu deixe de amá-la”. O trajeto foi maravilhoso, brindado, tranquilo, seguro e “acompanhado” – tudo o que eu precisava neste dia. As surpresas desagradáveis deste veraneio simplesmente “viraram pó” – sabe-se lá se aconteceram …

   Já estou em casa. E felizzzz!

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Saberes & Fazeres nº110 - Grupo internacional Os Gaúchos

 


Saberes & Fazeres, um programa que deu certo

 

    O último programa transmitido pela Comissão Gaúcha de Folclore foi no Rancho do Bitello. Dia 1º de maio, feriado, foi feito na propriedade de Jairo Bitello, carreteiro, que oportunizou muitos conhecimentos para a equipe da CGF e para as Envelhescentes, lideradas pleo Marco Aurelio Alves.
    O programa 109 teve a apresentação do psicólogo e vice-presidente da CGF, Marco Aurélio, com a técnica do presidente Rogério Bastos. Um bate-papo descontraído. Confira na Fanpage da CGF no facebook.


Jairo Bitello, Lúcia Brunelli e Marco Aurelio Alves

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Contos do Curso de Formação Folclórica de 2022


Como forma de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio Grande do Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração de um conto local.

 

 O conto deste dia é de Francesca Mondadori


ABAETÉ, O VERDADEIRO

 

Será que com este conto consigo que prolonguem a minha existência? É que, cá entre nós, por aqui onde estou, poucas coisas são preservadas. Muitas das minhas comadres e compadres já se foram e pouquíssimas ainda resistem. Nossas histórias estão sendo perdidas juntamente com as queridas pessoas que por aqui passaram.

Sabe, há não muito tempo atrás, o lugar onde estou era uma lagoinha e não havia planos de que eu existisse. Porém, a comunidade em nosso balneário cresceu. E, com isso, mais visitantes vieram. Então, ali, ao lado da igreja Matriz eu, também, cresci. Belo, como nos padrões da época. Diziam que eu estava sempre colorido, que a minha áurea era em tons pastel. Ao longo do tempo, também tive minhas modificações, assim como as crianças que se tornaram jovens e, depois, adultos com suas famílias.

De tempos em tempos, quando a maresia ficava mais fraca e o sol mais quente, mais pessoas apareciam para me ver. E, durante muitos anos, essas eram as mesmas que por aqui se estabeleciam. Era um agito. Ah! Meus pés ainda sentem as correrias, as chuvas, os silêncios. Quanta saudade sinto do seu Anselmo! Estava sempre com uma vassourinha, varrendo o chão e, tentava impedir as crianças de correrem nos corredores. Na hora do café da tarde, sempre era chamado pela dona Enery para um cafezinho. Também tinha o seu Quico! Ele vinha com a sua charrete, armazenava o lixo em um tonel e ia embora. Seu Quico era o marido da dona Rosa, a benzedeira. E a dona Maria, a lavadeira, que recolhia as trouxas de roupa e levava para lavar. Quando voltava, com seu carrinho de mão de madeira, as roupas estavam limpas e passadas!

 Ah! Se eu parar para neutralizar os sons de hoje, ainda consigo ouvir os vendedores de jornal que chegavam cedinho. Não sei se tinham aula de como avisar a sua chegada, mas vinham com muita alegria e com os mesmos dizeres "Correeeio, Zero-Hora e Folha!!!", esses passavam às seis/ sete horas da manhã e outra vez à tarde. E o verdureiro que vinha gritando: "banana, bacate, cenoura, milho-verde, radite, VerdureeeirO!", esse ainda é o mesmo que passa por aqui!

O tio Joca e Dedé, chamados assim carinhosamente, eram os encarregados de venderem as melancias. O tio Joca trazia as compridas e o tio Dedé as mais arredondadas. Há quem diga que o pessoal gostava mais das do tio Joca, mas eu mesmo nunca as experimentei. 

Com os barulhos das portas batendo, lembro-me que sou do tempo que se tinha horário de silêncio! Ah! Pobres crianças, não podiam nem correr e nem gritar, por aqui, nestes momentos. Na verdade, era algo muito sério, uma regra severa que se dava todos os dias das 13h às 15h. Seu Anselmo não deixava ninguém entrar durante esse tempo. Às vezes antes das 13h ele deixava os meninos da balainha de palha, os puxapucheros, entrarem para vender a sobremesa. Depois das 15h, chegavam o pessoal dos sonhos para o café da tarde. Os sonhos vinham quentinhos e com um cheiro tão bom que se espalhava por aqui e, claro que sempre vendiam bem. Havia, também, os vendedores de casquinha com as suas matracas que até hoje fazem seus barulhinhos pelas ruas dessa cidade, no verão.

Porém, nenhum desses barulhos se compara às turminhas que fiz parte. Uma delas era grande, muitos membros que se reuniam na salinha do segundo andar para jogar cartas, brincar de detetive, cantar com a nossa amiga Clarice, do 206. Essas crianças! Algumas vezes, a gente pegava os prendedores de roupa e os quebrava, depois íamos na varanda da salinha e jogávamos em quem passava!!! Claro que era proibido e não é nada bonito, mas ainda é melhor do que as bexiguinhas d'água e os cuspes da turminha de uma geração mais recente. Aquela turma combinava de ir ver o sol nascer, em segredo. Nunca fui junto, mas sempre os acompanhava à distância. Também, à tardinha, no horário da revoada dos morcegos, os meninos armavam-se com pedaços de madeira e raquetes e iam às garagens brincar de caçar morcegos! Era mais uma das atividades da gurizada.

Quando o sol baixava e o frio começava, essas pessoas despediam-se de mim, mas havia outras que continuavam comigo, que passavam o ano inteiro! Os dias e as noites também ficavam mais calmos em todo o balneário.

Por tantos momentos passei. Vi tanto acontecer! Aqui viramos cidade e muito mudou. Eu sou um velho jovem, mas já tenho muitas dores. Essas são dos que não consegui me despedir. Dos que foram embora e não voltaram, dos que foram abaixo e somente senti a tristeza e o pó sendo levado pelo ar. Ainda há a saudade e as recordações. Guardo tantas memórias comigo! Ainda há quem passe por mim e comigo se emocione e, claro, quem me ache ultrapassado e inconveniente. Mas meus inquilinos, veja só, conseguiram, até mesmo, que eu usasse wi-fi. Para alguém como eu, com 58 anos de idade! Eu sei que posso parecer jovem ao falar de minha idade, acontece que, sinto como se vivesse junto com todas as vidas que fiz amizade.

Cada um deles têm suas histórias comigo. Veja só, o Dr. José Carlos Medaglia, era engenheiro e foi meu mentor. Junto com o seu Pedro Viero, do 209, contataram os proprietários dos terrenos vizinhos para construírem um novo prédio. No seu início, foi o mais alto da redondeza! Um dos proprietários, foi contratado para ser o mestre de obras, o seu Antero, do 111 e 112, que por aqui zelou por 37 anos e sempre me disse que daqui só sairia para a morada eterna. E assim foi.

Esse seu Pedro, do 209, era um dos proprietários de terrenos daqui. O da paz, tranquilizava tudo e todos. Tinha sempre boas conversas que duravam horas! Sua filha, Marisa, hoje é a proprietária deste apartamento.

Tinha a dona Idelvira, do 203. Ela tinha uma facilidade de entreter a criançada! Uma pessoa muito alegre e festiva! Ela tinha uma coleção de gatinhos de porcelana que sempre chamava atenção. As crianças batiam na sua porta para ver os gatinhos e ganhar balas. Nas terças-feiras, ela ia na missa das seis da tarde e trazia pãezinhos de Santo Antônio para os amigos. O mágico Alberto, do 306, também deixava as crianças entretidas, reunindo-as na salinha e fazia mágica para diminuir as bagunças e reclamações que aconteciam por aqui.

Ah! O apartamento 104 era o do seu Silval que deixou para o seu filho, o Renatão. Este vinha todo o verão com uma Kombi azul e branco e passava os dias pescando. As crianças sabiam, sempre, quando ele ia chegar, porque ele chegava, chegando! Era pura alegria! Hoje esse apartamento é de seu filho, Cato. Que é um grande amigo meu! Muito participativo e meu defensor! O seu Sadi, do 302, é outro amigo que se preocupa e me defende! Aliás, ele é o nosso síndico! 

As minhas queridas amigas dona Mariza e dona Lurdes, que saudade das nossas conversas! A dona Vilma, mãe da Mariza, tinha o apartamento desde o início. Ou seja, até hoje o 108 permanece com os mesmos donos! E, claro, a dona Marília e o Dr. Democratino, do 110, são amigos de longa data e passavam um grande período do inverno aqui. Apaixonados pela nossa praia e, modéstia parte, por mim também!

Mas, sabe, sinto que aqui, mais do que contar sobre mim, preciso falar sobre uma família, os Souza da Costa, do 111 e 112. Uma das crianças que vi crescer, ainda mora comigo, é a minha inquilina mais antiga. Já não é mais tão jovem fisicamente, mas me defende com unhas e dentes. Quem a conhece sabe que ela está sempre aqui pertinho com suas gatas. Maria Aparecida ou Cida, para os amigos. Ela é filha do seu Antero e da dona Enery e, junto com seus irmãos João Paulo, Rosane, Rosália e Delurdes, que eram meus residentes fixos, criaram grandes e engraçadas histórias comigo, que um dia ainda hei de contar. A Cida lecionou geografia em algumas escolas e hoje é aposentada. Com sua ajuda, consigo recordar das histórias e de todos que por aqui passaram. Com sua graça passou aos seus sobrinhos o seu amor e zelo por mim. Veja só, já conheci a quarta geração desta família e, entre várias conversas nossas estão o desejo de que eu me mantenha firme e forte para que possa conhecer muitas outras gerações.

            Agradeço aos que permaneceram comigo, desde o início, através de suas famílias: Os Amilibia, Dias, Farias, Hoffmann, Lubisco, Maffazioli, Medeiros, Menezes, Souza da Costa, Vargas e, Viero. 310, 106 e 206, 201, 212, 311, 107, 104 e 204 e 205, 108, 111 e 112, 313, 209, respectivamente. E aos que cuidam de mim diariamente. Apesar de meu grande porte, dos meus tijolos, concreto e as minhas várias cirurgias plásticas, ainda mantenho todas as vidas, momentos e memórias em meu coração.

            Acabei de me dar conta que não me apresentei! Prazer, meu nome é como o nome de muitas ruas de minha localidade. Sou o Edifício Abaeté, que em Tupi Guarani, significa "homem verdadeiro". E fico na rua Andira, número 396, no centro de Capão da Canoa.



Por Francesca Mondadori