Como
forma de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio
Grande do Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como
enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore
disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso
é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração
de um conto local.
O conto deste dia é de Maria
Enildes Mauss dos Santos
O MISTÉRIO DA FAZENDA SANTO ANTÔNIO
A
fazenda Santo Antônio está localizada no município de Tapes/RS, mais
precisamente distante 04 Km do centro da cidade.
De
propriedade de Eulália Bordagorri, a produção da fazenda era voltada ao
beneficiamento de crina vegetal e sua venda para outras cidades e estados
brasileiros. Lá havia um depósito onde a crina era armazenada até que as
embarcações viessem buscar. Tapes era a maior produtora de crina vegetal da
América Latina na época. Hoje é a maior produtora do Brasil.
Muitas
famílias moraram na sede da fazenda por necessidade de trabalho, inclusive meus
pais. E, todos que lá moraram relatavam os fatos estranhos que por lá ocorriam.
Tempos
depois essa fazenda foi arrendada pela família Wolf, proprietária da empresa
Mercantilarroz, que, na época, beneficiava e comercializava arroz através de
seus Engenhos, todos situados às margens da Laguna do Patos, no centro da
cidade de Tapes/RS.
Quando
o senhor Adilino Barbosa foi nomeado capataz da fazenda, precisou mudar-se com
sua família para a sede da fazenda. Isso ocorreu no ano de 1945.
Nesse
tempo, a sede da fazenda era um casarão em estilo português, composto por
vários cômodos, muitos quartos e uma sala muito grande, localizada bem no
centro da casa.
Nas
laterais da casa existiam figueiras muito antigas. Aos fundos ficavam os restos
de senzalas, resquícios da escravidão, porém já em mau estado de conservação.
Na
casa não havia luz elétrica, e a iluminação era feita através de lampiões e
velas.
A
família do senhor Lino, como era conhecido, era formada pela esposa, Sra. Marta
Barbosa, que atuava como professora, e seus cinco filhos, sendo duas meninas e
três meninos.
Sueldir,
uma menina na época do conto narrado contava com 10 anos de idade, a mais velha
dos filhos do casal, é quem nos relata os fatos que compõem esse conto.
I - A CHEGADA À FAZENDA
Ao
chegarem à sede da fazenda e ao adentrarem na casa, a então menina Sueldir teve
sua atenção voltada aos quadros pintados diretamente nas paredes. Eram muito
bonitos e retratavam paisagens.
Muito
curiosa e observadora, logo viu uma imagem de Santo Antônio, de tamanho médio
que ficava no quarto onde dormiriam os meninos. A imagem ficava sob a porta,
num suporte, que mais parecia um oratório.
Em
vista de não haver iluminação elétrica na casa, a família resolveu, então, que
velas ficariam junto à imagem para que a casa não ficasse completamente às
escuras no período noturno. Ela lembra que, para alcançarem a imagem,
precisavam subir no encosto das cadeiras.
Quando
a noite chegou, tudo parecia tranquilo, o que era muito bom já que aquela seria
a primeira de muitas outras noites na casa da fazenda.
Porém,
logo escureceu e algo estranho começou a acontecer. Os novos moradores da casa
começaram a escutar um forte barulho de portas abrindo e fechando, o que assustou
a todos, não os deixando dormir. Seu pai, preocupado com o ranger das portas,
levantou-se e foi verificar se alguma porta havia ficado aberta. Mas para sua
surpresa, todas estavam fechadas...
Essa
situação ocorreu durante toda a noite e madrugada, fazendo com que todos,
assustados, não conseguissem dormir tamanho o barulho que de abrir e fechar
portas que se escutava na casa que somente cessou ao amanhecer.
E
assim se sucedeu repetidamente: Quando o dia amanhecia tudo ocorria tranquilo.
Porém, quando a noite chegava, o barulho recomeçava e permanecia pela madrugada
inteira, noite após noite...
E
certa noite algo diferente aconteceu.
Numa
pequena peça, ao lado da sala principal, onde Dona Martha havia organizado um
espaço para as costuras, entre outros objetos ficava, claro, sua máquina de
costurar.
A
família que estava reunida na cozinha para o jantar, começou a ouvir o barulho
da máquina, como se alguém estivesse costurando. Intrigados, foram até a peça e
lá encontraram a máquina fechada. Ninguém estava costurando...
O
tempo foi passando e a família, como era normal acontecer, também recebia
visitas em casa.
Certa
ocasião veio visitar os Barbosa um compadre que residia em uma localidade
próxima, Fortaleza, antigo distrito de Tapes, hoje cidade de Cerro Grande do
Sul.
Ele
havia chegado com uma mala, preparado para permanecer alguns dias, pois
precisava resolver algumas questões na cidade. Então, foi acomodado em um dos
quartos da casa.
Mas
a noite chegou...
O
visitante relatou que durante a noite ouviu a porta de seu quarto abrir e viu
uma mulher de branco adentrar, indo até o lado de sua cama. Em um primeiro
momento ele chegou a pensar que poderia ser dona Martha precisando de alguma
coisa, tentando explicar para si mesmo o inexplicável, ainda que estranhasse
esse fato. Pouco tempo depois, através dos olhos semicerrados percebeu que não
era a anfitriã que rondava sua cama.
Atemorizado,
o visitante não conseguiu mais dormir durante a noite, ficou esperando
ansiosamente o dia amanhecer. No dia seguinte, apressadamente, arrumou sua mala
relatando ocorrido aos compadres e partiu rapidamente.
Mas
a vida seguia seu rumo. Então, o dia de finados chegou.
Os
empregados que trabalhavam no armazenamento e na confecção dos fardos de crina
junto ao depósito da fazenda, chamados crineiros, impossibilitados de sair da
fazenda no dia de finados devido ao trabalho e pela dificuldade de
deslocamento, pois na época não havia estradas e sair da fazenda somente era
possível com o uso de charrete, cavalo, ou barco, mas no desejo de homenagearem
seus familiares e amigos mortos, levaram várias velas até dona Martha e pediram
que ela as acendesse junto ao oratório de Santo Antônio que eles sabiam existir
na casa. Ela, sensibilizada, não viu nenhum problema em atender ao pedido do crineiros,
e assim o fez.
A
noite chegou...e com ela outros acontecimentos.
Sueldir
relata que não conseguiram dormir naquela noite devido a procissão de inúmeros
vultos vestidos de branco que passavam ao lado da cama de seus pais em direção
ao oratório, sem que eles soubessem como agir.
Apesar
de tudo que vinha ocorrendo a vida seguiu e a família continuou a conviver com
o inexplicável.
O
tempo foi passando e nossa narradora ficou moça, namorou e depois de um tempo
noivou com Elemar Alves, que ia visitá-la na fazenda utilizando um barco para
chegar até lá, pois era um dos transportes utilizados para a ida até a sede da
Fazenda Santo Antônio.
Ao
redor da casa da fazenda haviam figueiras centenárias. Numa tarde de verão em
que estavam sentados embaixo de uma grande e antiga figueira que ficava ao lado
da casa, Elemar, que estava visitando a noiva, relata que de repente começaram
a ouvir barulhos de pedras sendo arremessadas, sendo que o barulho das pedras
batendo nos galhos da figueira era ouvido por todos que ali se encontravam.
Assustados,
e sem nada entender, foram verificar de onde estavam atirando as pedras. Porém,
nada foi encontrado...
Minha
mãe, hoje já falecida, contava que quando morou na fazenda não conseguia dormir
devido ao barulho de correntes arrastando pela casa.
Numa
outra ocasião, um empregado pediu para tomar água na cozinha onde havia um
filtro de barro. Quando estava se servindo, sentiu uma presença ao seu lado. Em
seguida ouviu uma voz sussurrando ao seu ouvido: - “se tiver coragem, me siga”.
O
homem, apavorado, olhou para todos os lados, mas nada viu.
II - E A VIDA SEGUIU...
O
tempo passou e a família permaneceu na casa, organizando sua rotina.
Seu
Lino desmanchou os restos da senzala, e no local fez uma horta. Em frente à
casa dona Martha fez um jardim.
Dona
Martha lecionava na escola próxima a casa da fazenda e, também, em outra escola
mais distante, para a qual se deslocava de charrete, e nesse período em que
moraram na fazenda teve mais dois filhos.
Com
o passar do tempo, sem uma explicação maior, as manifestações desapareceram.
Sueldir
aos 23 anos, casou-se com Elemar, e a festa foi na casa da fazenda. Depois
foram morar no centro da cidade, mas sempre iam visitar seus pais, mesmo depois
do nascimento de seus filhos.
Na
Fazenda ocorreu também a festa de comemoração de bodas de prata de dona Martha
e seu Lino, com muitos convidados.
A
família permaneceu na fazenda aproximadamente até 1967.
Desde
então, não se ouviu mais nenhuma notícia de outras manifestações na casa da
fazenda Santo Antônio.
Os
fatos narrados aconteceram e foram testemunhados por muitas pessoas. Muitos
acreditavam que havia alguma riqueza enterrada na fazenda. Inclusive, a maior
figueira teve muitas escavações a sua volta, e também isso aconteceu em outros
locais, mas nada foi encontrado.
Qual
seria a explicação para todos esses fatos?
Este
é um mistério que ainda hoje permanece no imaginário popular, sem explicação.
Várias pessoas que residiram na casa da fazenda davam relatos como esse que
aqui foi contado e que faz parte da história de Tapes. As pessoas com mais de
60 anos lembram de já ter ouvido muitas histórias sobre os acontecimentos na
Fazenda Santo Antônio.
Hoje
Sueldir está com 83 anos e Elemar com 86 anos. Tem quatro filhos, três homens e
uma mulher. Muitos netos e bisnetos, e seguem felizes em seu casamento.
A
sede da fazenda passou por reformas e hoje abriga um escritório e o restaurante
do camping dos Pinheirais, que fica no local e recebe muitos turistas e
moradores locais, especialmente no verão.
(Entrevista oral realizada com Sueldir Barbosa Alves e Elemar
Alves, na cidade de Tapes-RS, no dia 15 de junho/22.)
Por Francesca Mondadori