segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Contos do Curso de Formação Folclórica de 2022

 

Como forma de preservar e valorizar as manifestações culturais populares do Rio Grande do Sul, despertar o interesse e o gosto pelo folclore regional, bem como enriquecer o conhecimento de novos integrantes, a Comissão Gaúcha de Folclore disponibiliza o Curso de Formação Folclórica, todos os anos. Ao final do curso é solicitado um trabalho que, no ano de 2022, foi sobre a pesquisa e elaboração de um conto local.

 

Quem traz o conto de hoje é Luiz Antônio Farias Duarte

 

UM CTG COM UM C A MAIS

Porque o Lila Alves, de Pinheiro Machado, é um C.C.T.G

O que aqui se conta é a razão da existência de uma letra a mais na tradicional abreviatura para Centro de Tradições Gaúchas, neste caso em relação ao do município de Pinheiro Machado. A letra em questão é um segundo C, compondo, logo após o primeiro, o consagrado C.C.T.G. Lila Alves, que desde a década de 1950 anima a vida cultural local. A inserção é histórica, afetiva e plenamente justificável, como se verá a seguir.

O território onde hoje existe o município de Pinheiro Machado, 350 quilômetros ao sul de Porto Alegre, entre as Serras das Asperezas, do Passarinho e dos Velleda, a meio caminho entre Pelotas e Bagé, foi ocupado primeiro pelos índios ibitiruçu; depois pelo militar Rafael Pinto Bandeira (1740/1795), a seguir por seu cabo de ordens José Maria Rodrigues, o “Corrupio”; e finalmente pelos açorianos Thomaz Antônio de Oliveira, o “Nico” e José Dutra de Andrade, a partir de 1790 – conforme obra do tataraneto deste último, Odil Peraça Dutra (2017, p. 30-38).

Coberta por banhados extensos e pela mata nativa, essa região fronteiriça entre os espaços da coroa portuguesa com a coroa espanhola já era conhecida como Coxilha das Cacimbinhas em 1750, de acordo com o que apurou e registrou Dutra (2017, p. 39). Por essa época, o trânsito de animais era feito em tropas e o transporte de mercadorias, em carretas. Tanto tropeiros quanto carreteiros criavam suas rotas seguindo os cursos naturais de água, fazendo seu pouso junto às cacimbas que abriam para se abastecer. Natural foi, portanto, que o lugar recebesse o apelido de “Cacimbinhas”.

Quando, já instalado nas redondezas, José Dutra de Andrade ficou cego, fez à Nossa Senhora da Luz o voto de erguer uma capela em homenagem a ela, caso voltasse a ver ao lavar os olhos nas águas de uma das cacimbinhas. É nesse ponto que a realidade e a fantasia se encontram nas narrativas que contam o milagre obtido: Andrade (e Nico) realmente existiu (ram) e é (são) pioneiro (s) na colonização do município. Já o milagre circula como transferência de informação oral e escrita desde então, mas não tem reconhecimento oficial por parte da Igreja Católica.

De qualquer forma, e voltando aos fatos: Andrade combinou com o conterrâneo e lindeiro a doação conjunta de um “trato de terra”, efetivada em 10 de abril de 1851, para ereção de uma capela à Nossa Senhora da Luz “no lugar denominado Cacimbinhas, que passou a chamar-se oficialmente Curato de Nossa Senhora da Luz” (Dutra, 2017, p. 41). Com a natural edificação de residências nas proximidades do modesto templo, Cacimbinhas foi elevada à categoria de freguesia em 1857 e à vila em 1878 – segundo narra em anotações manuais o comendador Manoel José de Freitas, em documento preservado no Museu Histórico Farroupilha, de Piratini, ao qual Dutra teve acesso.

De 1878, ano de sua emancipação, a 1915, Cacimbinhas evoluiu como um dos mais antigos municípios rio-grandenses, com população predominantemente rural e economia centrada na pecuária (bovina e ovina) e na agricultura (trigo e de subsistência). Mas em 1915 tudo mudaria, como se conta na sequência.

Também o que se passa a contar neste trecho tem base em fatos reais e relativamente bem conhecidos na história, embora poucos saibam da relação dramática de Cacimbinhas com um crime que abalou o país em 8 de setembro de 1915: o assassinato de José Gomes Pinheiro Machado, um precursor do movimento republicano brasileiro, senador desde 1890 e, no seu tempo, o político gaúcho de maior influência nacional.

O crime foi cometido por Francisco Manço de Paiva Coimbra, filho de um padeiro português que havia se estabelecido em Cacimbinhas – e que o expulsara de casa devido a incompatibilidades irreconciliáveis. Com o pai sendo eleitor do Partido Republicano Rio-grandense (de Pinheiro Machado), o filho seguiu vida errante, circulando por Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, envolvendo-se com exploração de mulheres, falsidade ideológica, extorsão e roubo; e participando de manifestações contrárias aos governos estadual (de Borges de Medeiros) e federal (de Hermes da Fonseca).

Com o PRR onipresente na política gaúcha e a oposição esfacelada, as disputas municipais eram internas. Cacimbinhas não fugia à regra, e, dividida entre duas facções, fez com que o governo estadual lhe enviasse um emissário, o rábula Ney de Lia Costa que, em vez de pacificar a disputa, fez-se parte dela, assumindo um dos grupos e viabilizando-se como intendente provisório. Foi nessa condição que, em 30 de outubro de 1915, ele mudou o nome de Cacimbinhas para Pinheiro Machado, por ato unilateral, sem consulta às lideranças e à população.

A rebelião foi inevitável: embora não se discutisse a justiça de uma homenagem ao gaúcho ilustre barbaramente apunhalado pelas costas por um antigo morador de Cacimbinhas, não se esperava que esse preito atingisse o nome da vila e fosse imposto um castigo coletivo à sua população. O provisório foi irredutível aos argumentos das lideranças, que também não obtiveram receptividade no Palácio do Governo (então ocupado interinamente pelo vice-presidente, Salvador Pinheiro Machado, irmão do senador assassinado).

A consequência desse embate - até então levado a efeito em reuniões locais e em dezenas de telegramas encaminhados ao presidente licenciado Borges, ao vice Salvador e ao secretário do Interior, Protásio Alves – foi o enfrentamento armado. O autor do presente artigo escreveu, em 2015, “A guerra de Cacimbinhas”, livro-reportagem que trata do acontecimento e de suas consequências ao longo do tempo, estendidas à atualidade. No caso imediato, os “cacimbinhistas” obtiveram um sucesso inicial, expulsando o provisório da Intendência e da vila, mas a esse êxito breve sucedeu uma derrota política a seguir: o retorno e a reposição de Ney de Lima Costa ao cargo, pelo reforço que o governo havia enviado: tropas da Brigada Militar e o chefe de Polícia, Antônio Vieira Pires.

Mas Costa também não teve tempo de comemorar: reposto num dia, no outro já estava desalojado do poder, pelo mesmo emissário de Borges e Salvador. A “pacificação” imposta puniu ambas as facções em combate, e deu um aviso óbvio sobre quem mandava na política estadual. Cacimbinhas, a partir de então e até 1924 foi governada por intendentes nomeados. Nesse ano, finalmente, Hipólito Ribeiro Junior, um dos líderes da rebelião de 1915, foi eleito para um mandato completo de quatro anos – mas teve que afastar-se até setembro de 1925, para comandar tropa governista em enfrentamento com os federalistas, na chamada revolução de 1924. Os dez anos que se passaram contribuíram para repor a política local na normalidade institucional, mas não para que Cacimbinhas retornasse como nome do município, o que se conta na sequência.

Se Pinheiro Machado se impõe como nome oficial do município que, desde 1937, evoluiu de vila à cidade, pode-se dizer que Cacimbinhas persiste no imaginário, nos corações e nas mentes de quem habitou e habita esse rincão do extremo sul gaúcho. Essa apropriação do nome original, por certo, foi bastante intensa nos anos subsequentes à mudança, e assim se manteve enquanto viveu a sua geração mais diretamente afetada pela arbitrariedade.

O movimento pela retomada da denominação original, que por cerca de uma década movimentou as linhas telegráficas em direção ao Palácio do Governo (depois, Palácio Piratini) e à Assembleia Legislativa encontrou eco na imprensa local, que até os anos 1950 ostentava Cacimbinhas em seus cabeçalhos, em todas as edições; e na transmissão de gerações aos que nasceram depois de 1915.

A campanha prolongou-se pelas décadas seguintes, podendo ser verificada nas correspondências pessoais de seus moradores, sempre iniciadas com a palavra Cacimbinhas a indicar a data. Nem mesmo a substituição de gerações, ao longo do tempo, arrefeceu a apropriação do nome inicial que, assim, tornou-se afetivo e, pode-se dizer, afirmativo como indicação de origem de seus nativos e habitantes.

Iniciativas formais de mesmo objetivo também foram tomadas: em 18 de maio de 1952, representantes da comunidade criaram a Sociedade Amigos de Cacimbinhas que, entre outras atribuições, manteve intensa e regular participação na luta frustrada pela retomada do nome original do município.

O próprio brasão de armas do município, criado por lei de 27 de outubro de 1962 e ainda vigente, inclui em um de seus três campos o desenho de uma cacimba e o termo CACIMBINHAS, justificados assim:

“Recordação histórica da antiga capela de Nossa Senhora da Luz de Cacimbinhas e também um preito aos primeiros estancieiros que aí armaram seus galpões: José Dutra de Andrade e Antonio de Oliveira, que doaram a área territorial necessária à ereção da capela e onde se assenta a cidade de Pinheiro Machado” (DUTRA, 2017, p. 27-28).

Já a bandeira destaca, sobre as três listras que reproduzem as cores do pavilhão rio-grandense, os mesmos elementos do brasão, em especial a palavra Cacimbinhas, com todas suas letras em maiúsculas.

Na década de 1980, no próprio CCTG Lila Alves, surgiu o Piquete de Tradições Gaúchas Posteiros de Cacimbinhas - "pra manter viva a memória e honrar a tradição desta querência rainha" (conforme versos de Luiz Henrique Chagas). Na mesma época, o CCTG criou a Campereada das Cacimbinhas, rodeio crioulo local que ocorre até os dias de hoje.

Já na década seguinte, circulou na cidade a Voz das Cacimbinhas, veículo impresso de informação, editado pelo advogado Laudelino de Moura Junior, que foi vereador e presidente da Câmara Municipal.

Cacimbinhas circula, também, em manifestações musicais, como “Cacimbas”, vencedora da 6ª Comparsa da Canção (1992) – com letra do autor do presente artigo, melodia de Norma Coronel Trindade e interpretação de Robledo Martins (também eleita a mais popular e a melhor poesia): “Nas cacimbas desta terra/vim limpar minha existência,/lavar os olhos da guerra,/tomar banhos de querência”. E em “Milonga para Cacimbinhas”, apresentada na 7ª edição do mesmo festival (1993), com letra de Sejanes Dornelles, música e interpretação de Quininho Dornelles – classificada como a mais popular e, desde 1994, instituída como hino nativista do município, pela Câmara Municipal: ‘“Nossa Senhora da Luz”/e “Pouso das Cacimbinhas”,/dentro da história caminhas/para um futuro grandioso./E teu nome tão saudoso,/sem consultar foi mudado/para “Pinheiro Machado”,/mas não te baixaram o toso’.

O advento das novas tecnologias e a criação de mídias próprias, individuais e coletivas, tornou possível o surgimento, em 2011, do Grupo Cacimbinhas City na rede social Facebook. Ainda em atividade, o grupo tem hoje 3,5 mil membros. Esse canal de reaproximação e congraçamento entre quem permanece na cidade (pouco mais de dez mil habitantes) e os que a deixaram, mas mantêm vínculos familiares e afetivos, tem contribuído para a circulação de dados e informações relevantes sobre a história municipal e de sua gente. Podese, mesmo, dizer que esse conteúdo, fartamente ilustrado com materiais de acervos pessoais, atenua, ainda que virtualmente, a incompreensível inexistência de um museu municipal.

Ainda resultante da evolução tecnológica, funciona na internet, desde 2017, o blogue DiCacimbinhas, assim explicado por seu criador, Gabriel Medeiros: “O blog servirá para postar notícias/opiniões sobre assuntos relacionados a Pinheiro Machado, como também se de relevância de municípios da região”. Nesse espaço é possível acompanhar a já citada “A guerra de Cacimbinhas”, na forma de folhetim eletrônico e por capítulos. No mesmo ano, o jovem Saullo Guilherme dos Santos Dutra, Piá Farroupilha da 21ª RT (Região Tradicionalista) promoveu a 1ª Campereada Mirim nas Cacimbinhas.

Como se pode observar, essa dicotomia entre Cacimbinhas e Pinheiro Machado é condição que permanece. Hoje, menos como enfrentamento e mais como convívio entre ambas as denominações, uma na condição afetiva, outra na oficial. A criação do CCTG Lila Alves é uma demonstração a mais dessa situação. Em uma terra tão afetada pelo que aqui vem sendo contado, um Centro de Tradições Gaúchas precisaria associar o gentílico ao nome, completando-se, assim, como Centro Cacimbinhense de Tradições Gaúchas Lila Alves, como se conta adiante.

O Centro Cacimbinhense de Tradições Gaúchas Lila Alves foi criado em 31 de julho de 1953. Sua fundação ocorre, assim, quando a luta pela retomada do nome original da cidade ainda era vigente – e envolvia mobilizações junto ao Executivo e ao Legislativo estaduais, e neste último caso incluindo entre os interlocutores o então deputado Paulo Brossard de Souza Pinto. Se então, quase 38 anos depois do fatídico ato do intendente provisório, a comunidade ainda buscava resgatar o nome original, era natural que uma organização social em criação se engajasse a essa pretensão.

Sua finalidade principal: “preservar o núcleo de formação gaúcha, a filosofia do movimento tradicionalista gaúcho, difundindo as coisas do pago, que serviram de história, levando-as ao futuro, para se estudar a cultuar aquilo que foi costume em nossos antepassados, que nos é legado através do Movimento Tradicionalista Gaúcho”, conforme a Ata de Fundação, constante nos espetaculares arquivos de Odil Peraça Dutra, conservados exemplarmente por seu filho Luiz Carlos Leal Dutra, o Carlitos.

Dutra, que presidiu o Lila Alves nos períodos de 1968/69 e de 1983/84, registra em sua “Monografia Histórica do Município de Pinheiro Machado (ExCacimbinhas)”, obra lançada originalmente na década de 1990 e que em 2017 teve sua terceira edição, dados relevantes sobre a criação do CCTG – e que são os únicos disponíveis em bibliografia, até a atualidade. Conta que a reunião de organização do Lila Alves ocorreu sob presidência de Miguel Rodrigues Barcelos, na residência de Leonídio Pandiá Cardoso, e que entre as suas justificativas estava a de “procurar conservar intactas as tradições”. Barcelos era filho do médico Jonathas Rodrigues Barcelos, uma das personagens mais atuantes nos acontecimentos de 1915 e um importante opositor do intendente provisório.

Ainda conforme Dutra (2017, p. 246), o grupo criador argumentava então que “tradição não é só trajar-se de gaúcho, andar a cavalo, comer churrasco e cevar o amargo; é muito mais, é atividade, é vivência do pago que se transmite de geração para geração”. Assim, embora não tenha ficado registrada a razão pela qual o Lila Alves é um CCTG, com duplo C, parece plenamente justificável 21 na própria argumentação de sua fundação, em palavras escritas na ata inaugural, como “difundindo as coisas do pago, que serviram de história” – já que o episódio da mudança do nome do município é, ao que tudo indica, o mais dramático de sua história já quase sesquicentenária.

Também é possível encontrar esse vínculo entre o passado (1915) e o presente de então (1953) na consequência natural apontada na ata para a difusão da história local: “levando-a ao futuro, para se estudar e cultuar aquilo que foi costume em nossos antepassados” (IDEM). E na própria definição de tradição, apontada pelo grupo fundador: “(...) é atividade, é vivência do pago que se transmite de geração para geração”.

Mário Ratto da Silveira, Jorge Paniágua, João Ari Alves Martins, Gaspar Bueno de Moura e Alexandre Jacques Ortiz assinam a ata de criação do CCTG Lila Alves, além dos já referidos Barcelos e Cardoso.


Por Francesca Mondadori

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